quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Sobre literatura e dissecção de moluscos

Por Kátia Borges


“Acordar não é de dentro. Acordar é ter saída”
João Cabral de Melo Neto


É sobre um doloroso despertar que se debruça, em hábil prosa, este A Suave Anomalia. Morto o patriarca, eis que todos percebem que nunca estiveram verdadeiramente vivos, ou ao menos inteiramente despertos. É o local onde moram que os habita, ocultando entre suas paredes sentimentos que não ousam quarar ao sol suas vestes.

Não por acaso é o casarão que primeiro se descortina em um convite imperioso às visitas. Ao entrar, nos esgueirando sorrateiramente pelo corredor, após empurrar de leve a porta entreaberta para a sala antiga, quase ouvimos o pigarrear alto e fingido do avô, personagem que logo assoma vigoroso, sólido como as paredes que o abrigam.

É a morte do velho, agonizante desaparição, que fragilizará a pequena fortaleza da família, esse molusco cefalópode, cujos tentáculos estendem-se por entre noras, genros e agregados. Para entender tão delicado monstro marinho, é impossível ignorar a multiplicidade de pés com que se move, a sua natureza e organismo.

Mas nem todo conhecimento sobre o que compõe nossos corpos pode nos livrar das armadilhas da alma. É o que percebe o avô, ao ruir moralmente. A suave anomalia do título estilhaça-se, é mil, um caleidoscópio. Há quem enxergue imagens diferentes, graças ao efeito óptico, num tubo de papel. Há quem simplesmente se negue a ver.

Marina, personagem que carrega em si a casa da infância, com seus fantasmas e prazeres, move a trama. Há entre ela e o avô um abismo de proximidade. Sua aparição amaldiçoada desenha os lances de um jogo sem vencedores e impossível de abandonar. Por natureza e essência, ela será sempre a adversária. De algo, de alguém, da vida.

A Suave Anomalia pede leitura sem pressa, para ir recolhendo aqui e ali pequenas ironias, reconhecendo aqui e ali as artimanhas familiares que conhecemos bem, encontrando aqui e ali, em cada página, o talento de Márcio de Matos, este jovem autor baiano que estreia com voz própria e grande capacidade de dissecção de moluscos octópodes e de outros graciosos monstros marinhos.

1 comentários:

Nilson disse...

Belo crivo: pelo texto de Kátia, dá pra imaginar o clima, a proposta do livro. E Suave anomalia já é, antes de tudo, um belo título!