domingo, 7 de novembro de 2010

Distribuição X Circulação

Não concordo com quase nada do que disse o autor do artigo abaixo, mas acho válido publicá-lo em um blog sobre literatura. Há uma dicotomia que o cara rechaça, mas que me parece mais interessante de problematizar do que essa tal "literatura de esquerda": se a DISTRIBUIÇÃO literária, responsabilidade do rarefeito mercado, opõe-se à CIRCULAÇÃO literária (suposta atribuição da academia), por que ao invés de se debruçar insistentemente sobre os cânones, os acadêmicos não assumem mais radicalmente a função de garimpar e divulgar novos talentos?

O escritor sem público
Folha de São Paulo, caderno Ilustríssima, 07/11/2010

DAMIÁN TABAROVSKY
tradução PAULO WERNECK

Dilemas da literatura café com leite

RESUMO
Em contraponto aos consensos formados em torno do mercado e da academia, que levaram à perda de potência da literatura contemporânea, o autor propõe uma terceira via para a ficção. A "literatura de esquerda" rompe com essas convenções, seguidas até por autores "à esquerda" na política, porém conservadores esteticamente.

UMA VEZ, PERGUNTARAM à poeta argentina Alejandra Pizarnik por que nunca havia escrito um romance. Ela respondeu: "Porque todo romance sempre tem um diálogo assim: "Oi, tudo bem? Quer uma xícara de café com leite?".
É curioso, mas por fim Pizarnik acabou escrevendo narrativa e, além disso, segundo me inteirei mais tarde, a frase é apócrifa. Dá na mesma. Volto à ideia do café com leite: por que é verossímil que Pizarnik tenha dito essa frase?
Será porque encarnava o típico poeta que desconfia da prosa? Seria apenas só uma "boutade"? Expressa, por denegação, sua própria incapacidade para o romance? Será porque simplesmente não gostava de café com leite?

CONCESSÕES Todas as hipóteses são sólidas, seria preciso levá-las em conta na hora de decifrar o enigma. Eu gostaria, entretanto, de avançar outra possibilidade. Talvez essa frase informe sobre certo estado do romance contemporâneo: a época em que a prosa começa a fazer concessões à linguagem, o tempo em que o romance faz da concessão sua norma.
Ao mesmo tempo contemporânea tardia do "nouveau roman" e do descobrimento de Witold Gombrowicz (1904-69) na Europa ocidental, Pizarnik é, antes de tudo, testemunha do surrealismo do pós-Guerra -de sua conversão em múmia-, do realismo mágico e do sucesso de Cortázar. Ou seja, o momento em que a vanguarda se cristaliza, se converte em literatura banal, o momento de sua divulgação linguística, da perda de sua potência expressiva. O momento em que a literatura deixa de se expressar como dúvida e se escreve como certeza.
Esse estado de mediocridade expressiva da narrativa, que nos anos 60 horrorizava Pizarnik, hoje adquire um caráter não apenas literário, mas cultural. O que deixa Pizarnik horrorizada poderia ser definido sob o rótulo de política literária: o café com leite como verdade última da narrativa.

COURAÇA CULTURAL Mas, por fora da literatura, em outro lugar, existia um estado da cultura que dissimulava esse fracasso literário. O que acontecia talvez tivesse a ver com isto: a primazia da cultura sobre a literatura. Se hoje lemos muitos dos romances daquela época, se os lemos desprovidos da couraça cultural que os protegia, o que sobra?
Tão somente o vazio e a nostalgia daquela couraça.
No entanto, o desaparecimento dos anos 60 não implicou nenhuma revisão literária, nenhuma mudança profunda nos rumos centrais da narrativa. Somos testemunhas, hoje, da mesma política literária do café com leite, agravada pela ausência do clima cultural de então.
Se nos anos 60 a cultura predominava com tanta facilidade sobre a literatura, não era por sua riqueza, mas pelo sabor pasteurizado a que havia chegado a narrativa. Se hoje cultura e literatura se equilibram em sua intranscendência, é porque a pasteurização abarca a ambas.

ACADEMIA E MERCADO Dou um salto no percurso que vai dos anos 60 até hoje. Meu interesse é assinalar alguns aspectos da situação da literatura em nosso tempo. Aquilo que a sociologia denomina "campo cultural" ou "campo literário" está quebrado, partido, atravessado por dois polos de atração: a academia e o mercado.
Claro que esses dois polos não são necessariamente antagônicos (são conhecidos os homens e mulheres que circulam com êxito pelos dois mundos: de manhã, catedráticos, à tarde, articulistas "todo terreno", à noite, ganhadores de concursos; como uma espécie de citação cruel da utopia marxista do "pela manhã, carpinteiro, à tarde, pescador"), mas, se são dois espaços identificáveis, cada um com sua marca, com seus públicos, códigos, valores; dois lugares no estado de tensão, desatenção e fascínio mútuo.
Mas, antes de avançar, é preciso reconhecer duas ou três questões: nem o mercado nem a academia são âmbitos homogêneos; cada um deles está constituído por desacordos internos, estilos divergentes, "targets" específicos e paradigmas contraditórios.
Segundo: no estado atual do capitalismo, de uma maneira ou de outra, todos temos, tivemos ou teremos algum tipo de relação com o mercado (e também com a academia, uma vez que a circulação entre os dois espaços é tão intensa). Do ponto de vista pragmático, a partir do realmente existente, no momento em que um escritor publica (ainda que uma plaquete de 10 exemplares, ou a tradução de um poema para distribuir entre amigos), está operando no mercado. Dito e reconhecido.

A SALVO Mas o que me interessa é outra coisa, algo além do que o realmente existente, um enfoque que torne visível o invisível. Como defini-los? O mercado e a academia: dois espaços a salvo.
Não importa se o mercado literário argentino é pequeno em comparação ao de outras sociedades, nem se a academia vernácula não passa de uma ilusão; o importante é que a maior parte da literatura e da crítica que se publicam há 25 anos foi escrita a partir desses lugares.
Houve, desde então, uma vontade cultural tão forte para que realmente se instituísse um mercado literário e para que se consolidasse um âmbito acadêmico, que o realmente significativo não é se, por fim, tal vontade chegou a se concretizar, mas que o central foi essa política, a própria existência dessa vontade capitalista de ter um mercado funcionando e uma academia investigando.
Seguindo de perto o discurso dos atores pertencentes a cada um desses polos, nota-se um alto grau de desconfiança e ironia pelo outro (os autores da academia que passam para o mercado mantêm um clássico discurso antimercantil, desmentido pela falsa inocência de suas próprias obras; ao mesmo tempo, nossos best-sellers mantêm um constante chororô sobre a indiferença da crítica, que não reconhece seu talento).
Mas, se pensamos na cena a partir de outra perspectiva (ou seja, simplesmente pensando), é muito simples ver como ambos os polos estão ligados, não só pela circulação de figuras, mas, sobretudo, pela relação que os dois lugares mantêm com a literatura, pela ideia trivial que cada polo tem da escrita. O mercado e a academia escrevem a favor da reprodução da ordem, de sua sobrevivência, a favor de suas convenções.

NOVO É claro que, no capitalismo tardio, tanto o mercado como a academia precisam da novidade para se reciclarem (o caráter outrora radical do novo se converteu em mero valor de troca -no mercado- ou em simples valor de uso, na academia). Portanto, escrever a favor da manutenção da ordem, do consenso, não exclui o gosto pelo novo.
Depois de quase 150 anos de existência de tradição do novo, o mercado liquidou o assunto entendendo o novo tão somente como o último, o jovem, a mercadoria mais recente, esvaziando essa tradição de densidade e perspectiva. A academia, consciente de que a mudança e o novo já não passam de uma tradição, resolveu a questão historicizando o problema, incorporando-o a uma galeria de relativismos teóricos e culturais sem dúvida pertinentes, mas que exclui o que ainda sobrevive -como problema que incomoda- da tradição do novo: o desejo louco de mudança.
Como se a crítica e a narrativa acadêmica dissessem: "Já que eu sei que a mudança e a ruptura não passam de uma tradição entre outras, não busco seu efeito de novidade, porque sei que ele não existe, e então me conformo com o que há, com o realmente existente".

DESEJO LOUCO De fato, a mudança, a ruptura e a novidade, hoje, parecem não existir realmente. Mas sobrevivem como desejo, como pulsão. A sobrevivência do desejo louco pelo novo produz efeitos de escrita -romances e poemas reais- que nem a academia nem o mercado conseguem assimilar.
Enquanto o mercado e a academia escrevem a favor de suas convenções, a literatura que me interessa -a "literatura de esquerda"- suspeita de todas as convenções, inclusive as suas próprias. Não busca inaugurar um novo paradigma, mas pôr em questão a própria ideia de paradigma, a própria ideia de uma ordem literária, seja ela qual for. É uma literatura que se escreve sempre pensando no lado de fora, mas um lado de fora que não é real: esse fora não é o público, a crítica, a circulação, a posteridade, a tese de doutorado, a sociologia da recepção, a contracapa, os parabéns.

LINGUAGEM Esse lado de fora também não é a tradição, a angústia das influências, outros livros. Não. Esse lado de fora convencional, que está vedado para a literatura de esquerda, porque a literatura de esquerda é escrita pelo escritor que não escreve para ninguém, em nome de ninguém, sem outra rede além do desejo louco de novidade. Essa literatura não se dirige ao público: dirige-se à linguagem.
Não se trata da oposição de romances "de trama" vs. romances "de linguagem" -que é como dizer: a oposição de mercado vs. academia-, mas é muito mais ambiciosa: aponta a trama para narrar sua decomposição, para pôr o sentido em suspenso. Aponta a linguagem para perfurá-la, para buscar esse lado de fora -o lado de fora da linguagem- que nunca chega, que sempre se posterga, se desagrega (literatura como forma de digressão) esse lado de fora, ou talvez esse dentro nalcançável: a metáfora do mergulho (a invenção de uma língua dentro da língua).
Não mais o mergulho como busca da palavra justa, bela, precisa (o coral iluminado no fundo do mar), mas o momento em que a caça submarina se extravia e se converte em chapa, ácido, vidro moído, coral de vidro moído (a exploração de um barco naufragado).

COMUNIDADE Esse lugar em que se escreve e se inscreve a literatura de esquerda, esse outro lugar, que não é a academia nem o mercado, não existe. Ou, melhor dizendo: existe, mas não é visível, nem nunca será. Instalado na pura negatividade, a visibilidade é seu atributo ausente. Fora do mercado, longe da academia, em outro mundo, no mundo do mergulho da linguagem, em seu balbuceio, institui-se uma comunidade imaginária, uma comunidade negativa, a comunidade inoperante da literatura.
Pensar no tema da comunidade, de estar em comum com a literatura, aqui e agora, é uma ideia desaconselhável: esse pensamento está ameaçado por terríveis tradições como o cristianismo (a comunhão), o socialismo real (o comunismo) e até o nazismo (a "volksgemeinschaft", a comunidade do povo). Um passo em falso e o pensamento é apanhado feito um mosquito por qualquer um desses abismos.
Para tanto, como é de supor, muito autores tomam esse caminho. De vez em quando, a sociologia volta a ele -sob o modesto título de "laço social"-, bem como certos estudos culturais, mas não passo disso. A filosofia desertou do assunto. Ainda assim, a literatura de esquerda não pode se pensar a partir de outro lugar que não seja essa comunidade negativa.

INACABAMENTO Mas eu não disse apenas comunidade. Evoquei a comunidade inoperante. Uma comunidade, sim, mas inoperante: uma comunidade em que o inacabamento é o princípio, mas tomado como termo ativo, designando não a insuficiência ou a falta, mas o trânsito ininterrupto das rupturas singulares.
Nessa linha, cada escritor inaugura uma comunidade. Mas esse gesto inaugural não funda nada, não acarreta nenhum estatuto, não administra nenhum intercâmbio; nenhuma história da comunidade se engendra ali. Inaugura-se como interrupção. Mas, ao mesmo tempo, a interrupção compromete a não anular seu gesto, a recomeçá-lo outra vez.
A comunidade invisível onde se escreve e se inscreve a "literatura de esquerda", a comunidade literária que se institui de maneira imaginária, pertence à tradição da doação; mas não da doação suposta como um intercâmbio de interesses, como a economia política das doações; nem a tradição vanguardista da doação como "potlatch", como liberador de energias reprimidas.

INTERRUPÇÃO A comunidade inoperante, tal como queria defini-la aqui e agora, vai mais além da lógica da vanguarda histórica: supõe a doação da literatura como uma interrupção, como a interrupção de seu próprio mito, como o questionamento recorrente de seu próprio desejo. O que a literatura vem a dar é sua própria inoperância, sua incapacidade para converter-se em mercadoria (como a produz o mercado) e sua resistência a transformar-se em obra (como supõe a academia). Escapa ao plano da eficiência e da plenitude (o campo do mercado), mas também se subtrai ao da codificação (a academia).
A comunidade inoperante supõe a instituição literária do futuro, entendido como demora, como suspenso, como passo adiante; sua existência não precisa de provas (como precisam o mercado e a academia: números, citações, colóquios, exemplos).
Nessa comunidade negativa, a leitura não se impõe sob o modo da distribuição (como no mercado) nem no da circulação (como na academia), mas como generalidade imaginária da particularidade. Exprime-se como indeterminação. Quem pertence à literatura da comunidade inoperante integra a comunidade dos que não têm comunidade.

FRATRIA E POLEMOS A comunidade inoperante, a comunidade da literatura de esquerda, se institui sob dois preceitos opostos, o combate sempre real entre duas ordens contraditórias: a "fratria" e o "polemos" (palavras gregas que deram origem a "fraternidade" e "polêmica", respectivamente). Combate sem resolução, claro, mas de forças que se imbricam uma com a outra, se unem. A "fratria" é indissociável do "polemos".
É certo que no mercado e na academia há polêmicas, entabulam-se discussões entre pares. Mas acontecem sob o modo da comunicação, estabelecem-se no espaço do público. A comunidade inoperante se subtrai de ambos os polos: rechaça o público e abomina o privado; funciona no ponto de fuga do futuro; suspende a argumentação, rechaça a comunicação, já que "fratria" e "polemos" andam juntas.
O pertencimento à "fratria" é imaginário; está composto pelos seres que pertencem à comunidade dos que não têm comunidade; nenhuma fala universal toma sua voz; pelo contrário, expressa a fala da multiplicidade de solidões; estabelece o "polemos" como sua forma de ser no outro mundo; daí que não lhe interesse ganhar discussões (nega a noção de vitória), mas apenas de fazer a entrega da doação do indeterminado, o dom da literatura.

AVANÇO CONSERVADOR A literatura de esquerda não busca ser reconhecida, mas posta em questão. Mas, enquanto isso, o pior aconteceu: a literatura argentina contemporânea continua com sua política do café com leite, como se nada tivesse acontecido, nem sequer um registro de seu fracasso.
A volta ao café com leite não é um retrocesso, porque a literatura, assim como a história, não retrocede. Pelo contrário: é um avanço. Um avanço do discurso conservador, dos valores mais convencionais, das ideias mais requentadas, das estratégias mais calculadas, dos riscos menos tomados.
E, obviamente, a maioria dos escritores do café com leite pertencem à esquerda política, são próximos ao progressismo; esses escritores questionam a política neoliberal dos anos 90 sem questionar (pelo contrário: tiram proveito) o substrato em que se basearam: a ideia de sucesso no mercado, a midiatização, as fórmulas publicitárias, os posicionamentos de imagem corporativa.
Em troca, é preciso pensar a literatura de outro modo, a partir de outro lugar, a partir de um sem lugar. Esse sem lugar é o espaço da literatura de esquerda. A partir desse sem lugar, fala o escritor sem público.