domingo, 7 de novembro de 2010

Distribuição X Circulação

Não concordo com quase nada do que disse o autor do artigo abaixo, mas acho válido publicá-lo em um blog sobre literatura. Há uma dicotomia que o cara rechaça, mas que me parece mais interessante de problematizar do que essa tal "literatura de esquerda": se a DISTRIBUIÇÃO literária, responsabilidade do rarefeito mercado, opõe-se à CIRCULAÇÃO literária (suposta atribuição da academia), por que ao invés de se debruçar insistentemente sobre os cânones, os acadêmicos não assumem mais radicalmente a função de garimpar e divulgar novos talentos?

O escritor sem público
Folha de São Paulo, caderno Ilustríssima, 07/11/2010

DAMIÁN TABAROVSKY
tradução PAULO WERNECK

Dilemas da literatura café com leite

RESUMO
Em contraponto aos consensos formados em torno do mercado e da academia, que levaram à perda de potência da literatura contemporânea, o autor propõe uma terceira via para a ficção. A "literatura de esquerda" rompe com essas convenções, seguidas até por autores "à esquerda" na política, porém conservadores esteticamente.

UMA VEZ, PERGUNTARAM à poeta argentina Alejandra Pizarnik por que nunca havia escrito um romance. Ela respondeu: "Porque todo romance sempre tem um diálogo assim: "Oi, tudo bem? Quer uma xícara de café com leite?".
É curioso, mas por fim Pizarnik acabou escrevendo narrativa e, além disso, segundo me inteirei mais tarde, a frase é apócrifa. Dá na mesma. Volto à ideia do café com leite: por que é verossímil que Pizarnik tenha dito essa frase?
Será porque encarnava o típico poeta que desconfia da prosa? Seria apenas só uma "boutade"? Expressa, por denegação, sua própria incapacidade para o romance? Será porque simplesmente não gostava de café com leite?

CONCESSÕES Todas as hipóteses são sólidas, seria preciso levá-las em conta na hora de decifrar o enigma. Eu gostaria, entretanto, de avançar outra possibilidade. Talvez essa frase informe sobre certo estado do romance contemporâneo: a época em que a prosa começa a fazer concessões à linguagem, o tempo em que o romance faz da concessão sua norma.
Ao mesmo tempo contemporânea tardia do "nouveau roman" e do descobrimento de Witold Gombrowicz (1904-69) na Europa ocidental, Pizarnik é, antes de tudo, testemunha do surrealismo do pós-Guerra -de sua conversão em múmia-, do realismo mágico e do sucesso de Cortázar. Ou seja, o momento em que a vanguarda se cristaliza, se converte em literatura banal, o momento de sua divulgação linguística, da perda de sua potência expressiva. O momento em que a literatura deixa de se expressar como dúvida e se escreve como certeza.
Esse estado de mediocridade expressiva da narrativa, que nos anos 60 horrorizava Pizarnik, hoje adquire um caráter não apenas literário, mas cultural. O que deixa Pizarnik horrorizada poderia ser definido sob o rótulo de política literária: o café com leite como verdade última da narrativa.

COURAÇA CULTURAL Mas, por fora da literatura, em outro lugar, existia um estado da cultura que dissimulava esse fracasso literário. O que acontecia talvez tivesse a ver com isto: a primazia da cultura sobre a literatura. Se hoje lemos muitos dos romances daquela época, se os lemos desprovidos da couraça cultural que os protegia, o que sobra?
Tão somente o vazio e a nostalgia daquela couraça.
No entanto, o desaparecimento dos anos 60 não implicou nenhuma revisão literária, nenhuma mudança profunda nos rumos centrais da narrativa. Somos testemunhas, hoje, da mesma política literária do café com leite, agravada pela ausência do clima cultural de então.
Se nos anos 60 a cultura predominava com tanta facilidade sobre a literatura, não era por sua riqueza, mas pelo sabor pasteurizado a que havia chegado a narrativa. Se hoje cultura e literatura se equilibram em sua intranscendência, é porque a pasteurização abarca a ambas.

ACADEMIA E MERCADO Dou um salto no percurso que vai dos anos 60 até hoje. Meu interesse é assinalar alguns aspectos da situação da literatura em nosso tempo. Aquilo que a sociologia denomina "campo cultural" ou "campo literário" está quebrado, partido, atravessado por dois polos de atração: a academia e o mercado.
Claro que esses dois polos não são necessariamente antagônicos (são conhecidos os homens e mulheres que circulam com êxito pelos dois mundos: de manhã, catedráticos, à tarde, articulistas "todo terreno", à noite, ganhadores de concursos; como uma espécie de citação cruel da utopia marxista do "pela manhã, carpinteiro, à tarde, pescador"), mas, se são dois espaços identificáveis, cada um com sua marca, com seus públicos, códigos, valores; dois lugares no estado de tensão, desatenção e fascínio mútuo.
Mas, antes de avançar, é preciso reconhecer duas ou três questões: nem o mercado nem a academia são âmbitos homogêneos; cada um deles está constituído por desacordos internos, estilos divergentes, "targets" específicos e paradigmas contraditórios.
Segundo: no estado atual do capitalismo, de uma maneira ou de outra, todos temos, tivemos ou teremos algum tipo de relação com o mercado (e também com a academia, uma vez que a circulação entre os dois espaços é tão intensa). Do ponto de vista pragmático, a partir do realmente existente, no momento em que um escritor publica (ainda que uma plaquete de 10 exemplares, ou a tradução de um poema para distribuir entre amigos), está operando no mercado. Dito e reconhecido.

A SALVO Mas o que me interessa é outra coisa, algo além do que o realmente existente, um enfoque que torne visível o invisível. Como defini-los? O mercado e a academia: dois espaços a salvo.
Não importa se o mercado literário argentino é pequeno em comparação ao de outras sociedades, nem se a academia vernácula não passa de uma ilusão; o importante é que a maior parte da literatura e da crítica que se publicam há 25 anos foi escrita a partir desses lugares.
Houve, desde então, uma vontade cultural tão forte para que realmente se instituísse um mercado literário e para que se consolidasse um âmbito acadêmico, que o realmente significativo não é se, por fim, tal vontade chegou a se concretizar, mas que o central foi essa política, a própria existência dessa vontade capitalista de ter um mercado funcionando e uma academia investigando.
Seguindo de perto o discurso dos atores pertencentes a cada um desses polos, nota-se um alto grau de desconfiança e ironia pelo outro (os autores da academia que passam para o mercado mantêm um clássico discurso antimercantil, desmentido pela falsa inocência de suas próprias obras; ao mesmo tempo, nossos best-sellers mantêm um constante chororô sobre a indiferença da crítica, que não reconhece seu talento).
Mas, se pensamos na cena a partir de outra perspectiva (ou seja, simplesmente pensando), é muito simples ver como ambos os polos estão ligados, não só pela circulação de figuras, mas, sobretudo, pela relação que os dois lugares mantêm com a literatura, pela ideia trivial que cada polo tem da escrita. O mercado e a academia escrevem a favor da reprodução da ordem, de sua sobrevivência, a favor de suas convenções.

NOVO É claro que, no capitalismo tardio, tanto o mercado como a academia precisam da novidade para se reciclarem (o caráter outrora radical do novo se converteu em mero valor de troca -no mercado- ou em simples valor de uso, na academia). Portanto, escrever a favor da manutenção da ordem, do consenso, não exclui o gosto pelo novo.
Depois de quase 150 anos de existência de tradição do novo, o mercado liquidou o assunto entendendo o novo tão somente como o último, o jovem, a mercadoria mais recente, esvaziando essa tradição de densidade e perspectiva. A academia, consciente de que a mudança e o novo já não passam de uma tradição, resolveu a questão historicizando o problema, incorporando-o a uma galeria de relativismos teóricos e culturais sem dúvida pertinentes, mas que exclui o que ainda sobrevive -como problema que incomoda- da tradição do novo: o desejo louco de mudança.
Como se a crítica e a narrativa acadêmica dissessem: "Já que eu sei que a mudança e a ruptura não passam de uma tradição entre outras, não busco seu efeito de novidade, porque sei que ele não existe, e então me conformo com o que há, com o realmente existente".

DESEJO LOUCO De fato, a mudança, a ruptura e a novidade, hoje, parecem não existir realmente. Mas sobrevivem como desejo, como pulsão. A sobrevivência do desejo louco pelo novo produz efeitos de escrita -romances e poemas reais- que nem a academia nem o mercado conseguem assimilar.
Enquanto o mercado e a academia escrevem a favor de suas convenções, a literatura que me interessa -a "literatura de esquerda"- suspeita de todas as convenções, inclusive as suas próprias. Não busca inaugurar um novo paradigma, mas pôr em questão a própria ideia de paradigma, a própria ideia de uma ordem literária, seja ela qual for. É uma literatura que se escreve sempre pensando no lado de fora, mas um lado de fora que não é real: esse fora não é o público, a crítica, a circulação, a posteridade, a tese de doutorado, a sociologia da recepção, a contracapa, os parabéns.

LINGUAGEM Esse lado de fora também não é a tradição, a angústia das influências, outros livros. Não. Esse lado de fora convencional, que está vedado para a literatura de esquerda, porque a literatura de esquerda é escrita pelo escritor que não escreve para ninguém, em nome de ninguém, sem outra rede além do desejo louco de novidade. Essa literatura não se dirige ao público: dirige-se à linguagem.
Não se trata da oposição de romances "de trama" vs. romances "de linguagem" -que é como dizer: a oposição de mercado vs. academia-, mas é muito mais ambiciosa: aponta a trama para narrar sua decomposição, para pôr o sentido em suspenso. Aponta a linguagem para perfurá-la, para buscar esse lado de fora -o lado de fora da linguagem- que nunca chega, que sempre se posterga, se desagrega (literatura como forma de digressão) esse lado de fora, ou talvez esse dentro nalcançável: a metáfora do mergulho (a invenção de uma língua dentro da língua).
Não mais o mergulho como busca da palavra justa, bela, precisa (o coral iluminado no fundo do mar), mas o momento em que a caça submarina se extravia e se converte em chapa, ácido, vidro moído, coral de vidro moído (a exploração de um barco naufragado).

COMUNIDADE Esse lugar em que se escreve e se inscreve a literatura de esquerda, esse outro lugar, que não é a academia nem o mercado, não existe. Ou, melhor dizendo: existe, mas não é visível, nem nunca será. Instalado na pura negatividade, a visibilidade é seu atributo ausente. Fora do mercado, longe da academia, em outro mundo, no mundo do mergulho da linguagem, em seu balbuceio, institui-se uma comunidade imaginária, uma comunidade negativa, a comunidade inoperante da literatura.
Pensar no tema da comunidade, de estar em comum com a literatura, aqui e agora, é uma ideia desaconselhável: esse pensamento está ameaçado por terríveis tradições como o cristianismo (a comunhão), o socialismo real (o comunismo) e até o nazismo (a "volksgemeinschaft", a comunidade do povo). Um passo em falso e o pensamento é apanhado feito um mosquito por qualquer um desses abismos.
Para tanto, como é de supor, muito autores tomam esse caminho. De vez em quando, a sociologia volta a ele -sob o modesto título de "laço social"-, bem como certos estudos culturais, mas não passo disso. A filosofia desertou do assunto. Ainda assim, a literatura de esquerda não pode se pensar a partir de outro lugar que não seja essa comunidade negativa.

INACABAMENTO Mas eu não disse apenas comunidade. Evoquei a comunidade inoperante. Uma comunidade, sim, mas inoperante: uma comunidade em que o inacabamento é o princípio, mas tomado como termo ativo, designando não a insuficiência ou a falta, mas o trânsito ininterrupto das rupturas singulares.
Nessa linha, cada escritor inaugura uma comunidade. Mas esse gesto inaugural não funda nada, não acarreta nenhum estatuto, não administra nenhum intercâmbio; nenhuma história da comunidade se engendra ali. Inaugura-se como interrupção. Mas, ao mesmo tempo, a interrupção compromete a não anular seu gesto, a recomeçá-lo outra vez.
A comunidade invisível onde se escreve e se inscreve a "literatura de esquerda", a comunidade literária que se institui de maneira imaginária, pertence à tradição da doação; mas não da doação suposta como um intercâmbio de interesses, como a economia política das doações; nem a tradição vanguardista da doação como "potlatch", como liberador de energias reprimidas.

INTERRUPÇÃO A comunidade inoperante, tal como queria defini-la aqui e agora, vai mais além da lógica da vanguarda histórica: supõe a doação da literatura como uma interrupção, como a interrupção de seu próprio mito, como o questionamento recorrente de seu próprio desejo. O que a literatura vem a dar é sua própria inoperância, sua incapacidade para converter-se em mercadoria (como a produz o mercado) e sua resistência a transformar-se em obra (como supõe a academia). Escapa ao plano da eficiência e da plenitude (o campo do mercado), mas também se subtrai ao da codificação (a academia).
A comunidade inoperante supõe a instituição literária do futuro, entendido como demora, como suspenso, como passo adiante; sua existência não precisa de provas (como precisam o mercado e a academia: números, citações, colóquios, exemplos).
Nessa comunidade negativa, a leitura não se impõe sob o modo da distribuição (como no mercado) nem no da circulação (como na academia), mas como generalidade imaginária da particularidade. Exprime-se como indeterminação. Quem pertence à literatura da comunidade inoperante integra a comunidade dos que não têm comunidade.

FRATRIA E POLEMOS A comunidade inoperante, a comunidade da literatura de esquerda, se institui sob dois preceitos opostos, o combate sempre real entre duas ordens contraditórias: a "fratria" e o "polemos" (palavras gregas que deram origem a "fraternidade" e "polêmica", respectivamente). Combate sem resolução, claro, mas de forças que se imbricam uma com a outra, se unem. A "fratria" é indissociável do "polemos".
É certo que no mercado e na academia há polêmicas, entabulam-se discussões entre pares. Mas acontecem sob o modo da comunicação, estabelecem-se no espaço do público. A comunidade inoperante se subtrai de ambos os polos: rechaça o público e abomina o privado; funciona no ponto de fuga do futuro; suspende a argumentação, rechaça a comunicação, já que "fratria" e "polemos" andam juntas.
O pertencimento à "fratria" é imaginário; está composto pelos seres que pertencem à comunidade dos que não têm comunidade; nenhuma fala universal toma sua voz; pelo contrário, expressa a fala da multiplicidade de solidões; estabelece o "polemos" como sua forma de ser no outro mundo; daí que não lhe interesse ganhar discussões (nega a noção de vitória), mas apenas de fazer a entrega da doação do indeterminado, o dom da literatura.

AVANÇO CONSERVADOR A literatura de esquerda não busca ser reconhecida, mas posta em questão. Mas, enquanto isso, o pior aconteceu: a literatura argentina contemporânea continua com sua política do café com leite, como se nada tivesse acontecido, nem sequer um registro de seu fracasso.
A volta ao café com leite não é um retrocesso, porque a literatura, assim como a história, não retrocede. Pelo contrário: é um avanço. Um avanço do discurso conservador, dos valores mais convencionais, das ideias mais requentadas, das estratégias mais calculadas, dos riscos menos tomados.
E, obviamente, a maioria dos escritores do café com leite pertencem à esquerda política, são próximos ao progressismo; esses escritores questionam a política neoliberal dos anos 90 sem questionar (pelo contrário: tiram proveito) o substrato em que se basearam: a ideia de sucesso no mercado, a midiatização, as fórmulas publicitárias, os posicionamentos de imagem corporativa.
Em troca, é preciso pensar a literatura de outro modo, a partir de outro lugar, a partir de um sem lugar. Esse sem lugar é o espaço da literatura de esquerda. A partir desse sem lugar, fala o escritor sem público.



quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Trecho de estimação

Marina equilibrava-se sobre um pequeno banco. Era, indiscutivelmente, uma mulher belíssima, perturbadora. O gauche a dizia uma mistura de Rita Hayworth e Emmanuelle Béart. A pele muito branca contrastava com os cabelos levemente ruivos. O coque desleixado deixava à mostra o símbolo celta, um triskle tribal azulado. Sardas cercavam a tatuagem, descendo do pescoço até o meio das costas. Ali, o corpo fazia uma primeira curva, muito suave, que se acentuava perto do cóccix. Depois, a carne se alargava centrifugamente, formando uma bunda exata, tão perfeita que raramente passava impune pelas ruas.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Trecho

Era o cemitério mais mórbido e pomposo da cidade. O céu estava plúmbeo e poucos seres vivos incomodavam o silêncio. Lá se enterravam famílias tradicionais e a elite falida. Existiam muitos mausoléus, jazigos perpétuos e lápides suntuosas. Uma, em especial, chamou a atenção de Dona Salustiana. Laje tumular de granito, um anjo negro, o dedo em riste. Aos seus pés, uma criatura a suplicar por perdão. Assombrosamente hipnótica. Um Deus repressor, o mesmo que Dona Salu temia e adorava, estava ali, funesto, estático. O cortejo seguiu, mas a imagem alojou-se nas reminiscências da velha. Ela mirou a estátua por mais três vezes.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Celebração




segunda-feira, 23 de agosto de 2010

A primeira crítica

CORREIO
CADERNO VIDA
19.08.2010

A ruína de uma família

Franco Fuchs

Dos escombros de uma família desagregada com a morte de seu velho patriarca se levanta uma pesada nuvem de hipocrisia, mesquinhez e perversão. Da mistura desses elementos é feita A Suave Anomalia (Casarão do Verbo/R$ 35/232 páginas), boa estreia do soteropolitano Márcio Matos, 32 anos, que lança a obra hoje, às 19h30, na Galeria do Livro do Espaço Glauber Rocha, na praça Castro Alves.
De início, este romance pode soar arrastado. Principalmente pela linguagem um tanto empolada do narrador, que faz um retrato ácido e detalhista da família Melias Sá, um núcleo aparentemente comum, de classe média alta, mas decadente e às voltas com a partilha dos bens do avô - personagem assim chamado simplesmente.
A partir do quinto capítulo, porém, o leitor é surpreendido e definitivamente fisgado. O que parecia uma crônica de costumes se transforma em um instigante thriller policial. É quando o autor levanta suspeitas sobre a real causa da morte do avô. A hipótese de ele ter sofrido um corriqueiro enfarte é substituída pela possibilidade de envenenamento. Ainda mais quando se descobre que o velho, violento e depravado, não era exatamente benquisto por seus parentes.

Erudito pop - Além de misturar gêneros, o livro de Márcio Matos chama atenção por mesclar referências tanto eruditas quanto do universo pop. Assim, tem personagem que cita Freud (1856-1939), como a nora Tamisa, ou aprecia as pinturas barrocas de Caravaggio (1571-1610), feito a matriarca Salustiana. Em outro momento, um agregado surge com uma camiseta do Wolverine, e a jovem Marina, filha do "avô", passeia pela trama ouvindo o compositor americano Elliott Smith (1969-2003) e a banda brasileira Los Hermanos.
Aliás, o próprio autor confessa que adora escrever ouvindo música, e conta que o capítulo final foi escrito ao som do álbum A Rush of Blood to the Head, do Coldplay.
Outra marca que vale a penas destacar em A Suave Anomalia é a ausência da tal baianidade, presente em tantos livros de autores locais consagrados. "Não gosto de situar minhas histórias em locais específicos. Prefiro deixar as coisas em aberto", explica Márcio. Ele diz ser mais influenciado por figuras como James Joyce (18825 - 1941), Philip Roth e Eça de Queirós (1845-1900), do que pelos conterrâneos Jorge Amado (1912-2001) ou João Ubaldo Ribeiro.

Futuro Promissor - Contemplado pelo edital de apoio à publicação de obras de autores baianos da Secretaria de Cultura do Estado, A Suave Anomalia é o primeiro livro de Márcio, mas não o único. Ele tem uma novela concluída na gaveta, intitulada Voo Noturno, e já finaliza outro romance, chamado Ludovico, demonstrando como busca consolidar um projeto literário.
"Desejo alçar voos ainda mais ambiciosos e quero que minhas obras circulem pelo país”, diz o autor, que tem seu romance exposto no stand da Câmara Baiana do Livro, na Bienal Internacional do Livro de São Paulo.
O trabalho como chefe de Comunicação dos Correios e como professor de Relações Públicas na Unifacs não é empecilho para ele continuar escrevendo: "Os personagens gritam na minha cabeça o dia inteiro. Atravesso as madrugadas com o maior prazer escrevendo histórias".

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

E o que é felicidade, hein?

Um livro que finalmente ganha o mundo.
Os parentes e amigos reunidos.
Um encontro de muitos abraços.
A comunhão de (boas) expectativas.

Outros certamente farão idéia diferente da felicidade. Eu, até quando estiver bem velhinho, permanecerei cativo da experiência de felicidade que a noite de ontem me proporcionou. Obrigado a todos que prestigiaram o lançamento de A suave anomalia. Aos que não puderam ir, mas enviaram bons presságios, também deixo meu muito obrigado.



quarta-feira, 18 de agosto de 2010

(...)
Procuro despir-me do que aprendi,
Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram,
E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos,
Desencaixotar minhas emoções verdadeiras,
(...)
E assim escrevo, ora bem ora mal
Ora acertando com o que quero dizer, ora errando,
Caindo aqui, levantando-me acolá,
Mas indo sempre em meu caminho como um cego teimoso.

Alberto Caeiro (heterônimo de Fernando Pessoa)

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Entrevista na Rádio Cruzeiro AM 590

Confira aqui a entrevista concedida por Márcio Matos a Moisés Bisesti, na Rádio Cruzeiro AM 590.

O som e a palavra

Your hand on his arm
The hay stack charm around your neck
Strung out and thin
Calling some friend trying to cash some check
He’s acting dumb
That’s what you’ve come to expect
Needle in the hay (...) *

Canção silenciosa, sarjeta dos afetos reprimidos. Marina não queria ouvir a voz de Neto cantarolando música besta. Então, aumentou o volume no miolo do cérebro. Needle in the hay, needle in the hay, needle in the hay. A quentura quase suor umedecia o corpo de leve e irrigava as fantasias. Que assombro, que furor, que impulsos! A vontade estendida no contato prenunciava a má ventura. Não se poderia apostar apenas no momento, o momento é só segundo, nuvem. Depois, a tempestade vem, com todas as suas heresias e tormentas.

(*) Needle in the hay, de Elliott Smith

terça-feira, 10 de agosto de 2010

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Sonho desperto

Ontem, sem dúvida, foi uma das noites mais felizes da minha vida. Ontem, eu deixei que caísse sobre mim aquele orgulho besta, que faz a gente se sentir um pouco melhor do que de fato é. Foi uma das melhores noites de sono que já tive. Curiosamente, não sonhei - ou pelo menos não me lembro de ter sonhado. Há uma justificativa. Meu sonho estava desperto e, com suas 230 páginas, acalentava meu sono. Cheguei a acordar algumas vezes, toquei no sonho recém-impresso e, confesso, duvidei da realidade. A realidade, esse troço chato, que em geral apenas nos massacra, pela primeira vez se mostrou muito mais interessante do que um sonho bom.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Sobre literatura e dissecção de moluscos

Por Kátia Borges


“Acordar não é de dentro. Acordar é ter saída”
João Cabral de Melo Neto


É sobre um doloroso despertar que se debruça, em hábil prosa, este A Suave Anomalia. Morto o patriarca, eis que todos percebem que nunca estiveram verdadeiramente vivos, ou ao menos inteiramente despertos. É o local onde moram que os habita, ocultando entre suas paredes sentimentos que não ousam quarar ao sol suas vestes.

Não por acaso é o casarão que primeiro se descortina em um convite imperioso às visitas. Ao entrar, nos esgueirando sorrateiramente pelo corredor, após empurrar de leve a porta entreaberta para a sala antiga, quase ouvimos o pigarrear alto e fingido do avô, personagem que logo assoma vigoroso, sólido como as paredes que o abrigam.

É a morte do velho, agonizante desaparição, que fragilizará a pequena fortaleza da família, esse molusco cefalópode, cujos tentáculos estendem-se por entre noras, genros e agregados. Para entender tão delicado monstro marinho, é impossível ignorar a multiplicidade de pés com que se move, a sua natureza e organismo.

Mas nem todo conhecimento sobre o que compõe nossos corpos pode nos livrar das armadilhas da alma. É o que percebe o avô, ao ruir moralmente. A suave anomalia do título estilhaça-se, é mil, um caleidoscópio. Há quem enxergue imagens diferentes, graças ao efeito óptico, num tubo de papel. Há quem simplesmente se negue a ver.

Marina, personagem que carrega em si a casa da infância, com seus fantasmas e prazeres, move a trama. Há entre ela e o avô um abismo de proximidade. Sua aparição amaldiçoada desenha os lances de um jogo sem vencedores e impossível de abandonar. Por natureza e essência, ela será sempre a adversária. De algo, de alguém, da vida.

A Suave Anomalia pede leitura sem pressa, para ir recolhendo aqui e ali pequenas ironias, reconhecendo aqui e ali as artimanhas familiares que conhecemos bem, encontrando aqui e ali, em cada página, o talento de Márcio de Matos, este jovem autor baiano que estreia com voz própria e grande capacidade de dissecção de moluscos octópodes e de outros graciosos monstros marinhos.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Fazer ficção é sonhar acordado

Entrevista concedida a Frente & Verso Comunicação Integrada

Faltando 15 dias para o lançamento do seu primeiro livro, o autor baiano Márcio Matos fala dos desafios enfrentados pelos novos literatos brasileiros, da experiência de produzir A Suave Anomalia, romance vencedor do edital de Apoio à Edição de Livros de Autores Baianos, que sai pelo selo da editora Casarão do Verbo - e dos preparativos para o lançamento da obra em 19 de agosto, às 19h30, na Galeria do Livro do Espaço Unibanco Glauber Rocha.

O que o fez escrever A Suave Anomalia?

É muito difícil para um escritor explicar as razões do seu ofício. Primeiro, porque pode parecer cabotinismo. E segundo porque não há uma motivação específica. A minha escrita é uma resposta ao que eu vejo e ao que se passa comigo. Provavelmente, A Suave Anomalia nasceu a partir da incômoda observação do comportamento de alguma família, não necessariamente a minha.

Qual a proposta de seu livro?

Não gosto da palavra proposta. Ela soa como algo planejado, pomposo e, definitivamente, A Suave Anomalia não nasceu de nenhuma intenção prévia. Porém, se pensarmos no resultado final do livro, poderíamos dizer que ele é uma crônica de costumes.

O senhor faz uma crítica à família?

Sim e não. A instituição familiar é complexa, mas ela representa apenas a união entre duas pessoas naturalmente atraídas em torno de algum propósito: procriação, autopreservação etc. O sujeito existe antes da família. Nela ele adquire parte da sua formação; a partir dela ele se projeta. Dentro da família o sujeito vivencia problemas que são só dele, mas que podem ser potencializados pelo convencionalismo do modelo de convivência comum à maioria das casas (geralmente opressivo e hipócrita). Em A suave Anomalia eu focalizo o sujeito. A família é apenas o ambiente catalisador dos dilemas individuais.

Por que optou por uma ficção?

Fazer ficção é sonhar acordado. Borges, que pra mim é um escritor quase insondável, tem uma frase fundamental: "A literatura não é outra coisa além de um sonho dirigido".

Por que alguns personagens não têm nome? Dizem que o nome é uma das marcas da identidade de uma pessoa.

Há um núcleo central de personagens que conduz a narrativa, que faz as coisas acontecerem e há os "mortos-vivos", que orbitam em torno desses personagens. Os sem-nome até tentam algum protagonismo, mas em geral são arrastados pelo que os mais determinados desejam. Quando a identidade é falha, o indivíduo fica à mercê dos outros.

O mistério que conduz a trama foi casual ou decidido no início da história?

O mistério serve à narrativa e não o contrário. Não foi a minha intenção fazer o que os americanos chamam de "whodunit", o famoso "quem matou?". Sempre me interessa muito mais dissecar as motivações dos personagens.

Vamos falar um pouco sobre os preparativos para o lançamento da obra?

Está tudo muito bem encaminhado. A equipe que está comigo na empreitada é formada por pessoas muito competentes e todos estão se esforçando para, ao menos, lançar no mercado um produto digno do formato livro.

Quais as dificuldades que o Senhor enfrentou para publicar o livro?

Sou um cara cético. Tenho a consciência de que estou na periferia do sistema cultural do país e, talvez por isso, não tenha corrido atrás de uma editora. Acho que por aqui a grande saída são mesmo os editais culturais e o patrocínio das grandes empresas.

O senhor acredita que há falta de incentivos ao escritor no Brasil?

Não acho que alguém precise de incentivo para se tornar escritor. Essa necessidade simplesmente se impõe sem que tenhamos controle consciente sobre ela.

O que acha do escritor brasileiro?

O escritor brasileiro "é antes de tudo um forte". Precisa ter perseverança para insistir na carreira. Somos um país de iletrados e, por aqui, mesmo os que se interessam por livros preferem os de auto-ajuda ou os de vampiros castos.

Quais escritores te influenciaram e de que forma?

O maior de todos: Philip Roth. O que tem maior capacidade para contar histórias: Eça de Queiroz. E o mais genial desbravador da alma humana: James Joyce. Seria um atrevimento dizer que eles me influenciaram. Prefiro dizer que eles me inspiraram.

O leitor poderá aguardar novos lançamentos de Márcio Matos?

Só quem pode responder a essa pergunta são os editores. Eu continuarei com meus alfarrábios (já deu pra perceber que a escrita me persegue, né?).

segunda-feira, 12 de julho de 2010

A arte de descascar batatas


"'Por que um livro?' foi a pergunta que me fez Jandira, a quem, há tempos, comuniquei esse propósito. 'Já não há tantos? Por que você quer escrever um livro, seu Belmiro?'. Respondi-lhe que perguntasse a uma gestante por que razão iria dar à luz um mortal, havendo tantos. Se estivesse de bom humor, ela responderia que era por estar grávida. Sim, vago leitor, sinto-me grávido, ao cabo, não de nove meses, mas de trinta e oito anos. E isso é razão suficiente. Posta de parte a modéstia, sou um amanuense complicado, meio cínico, meio lírico, e a vida fecundou-me a seu modo, fazendo-me conceber qualquer coisa que já me está mexendo no ventre e reclama autonomia no espaço. Ai de nós, gestantes."(O Amanuense Belmiro, Cyro dos Anjos)

Foi por essa razão, Márcio, que você escreveu “A suave anomalia”?, pergunta-me Tamisa, sentada na poltrona à frente.

Eu não saberia dizer. E o pior é que Tamisa só queria ouvir uma confirmação pra me sacanear. “Pretensioso como eu”, ela diria.

Pois eu não sei mesmo. Agora, que tem um troço na minha cabecinha, um troço que pede pra vir ao mundo, para chamar a atenção dos outros, ah, isso tem. Que finalidade cada um dará para o que eu insisto em verbalizar, não é problema meu. A literatura, a arte e tudo o mais, não tem a função de um descascador de batatas.

A gente até descasca as nossas batatas por meio dos livros (a arte de descascar as próprias batatas é algo do qual nenhum ser humano está livre). Talvez seja o compartilhamento dessa experiência que interessa ao outro. Quanto mais humana ela for, mais interesse despertará.

Eu não seria tão otimista, me diz Tamisa, com um sorrisinho maroto. Quantas pessoas você conhece se interessaram em ler a saga de Fausto?

Pronto. Eu já nem sei pra que estou escrevendo esse blog.

Sabe, sim.