Prólogo


      Havia uma porta entreaberta entre a sala antiquíssima e o corredor que levava à saída. Um fiapo de luminosidade saía do vão, lume frio, lívido. O facho oblíquo da luz atravessava a espiral de poeira e as partículas do pó dançavam na fulgura morta. O tempo rápido despejava o dia na contrafação azul da felicidade. A vida mesma e triste de qualquer lugar não permitia supor que males e desgostos consumiam a intimidade do casarão, desde sempre assombrado por sentimentos silenciosos e assustadores, encobertos e despudorados.

      Ranger de dobradiças. Num átimo, a figura do avô escancarou toda a porta, bocejando, conduzindo-se sofregamente para o sofá de estampa berrante. Dormira durante toda a manhã e, ao azo da tarde, despertou por causa das vozes que vinham da varanda.

      A língua encharcada de malva e os olhos resilientes, acostumados com a liturgia da vida: espera, sofrimento, paixões inconfessáveis, menosprezos, mentiras ternas. Os disfarces, de há muito, se converteram em substância vital, hábito encarnado.

      Já passava das treze horas. Cabreiro, o velho levantou-se na intenção de espreitar a conversa. Como sempre, o diabo do meio-dia se apossara do seu espírito e ali permaneceria pelas horas restantes da tarde, até que a noite chegasse e cobrisse tudo de sono e sombras.

      Dirigiu-se para o corredor e, na intenção de anunciar a presença, pigarreou alto. A audição falhava, exigindo que dobrasse o esforço para ouvir a conversa da esposa com a vizinha. De repente, teve a ânsia bisbilhoteira usurpada por um zunido devastador: o trinado de uma ave, oxítono, lento, rasgou a pasmaceira vespertina. Na verdade, o estrilado foi de um passare do rubro, volumoso, e só pareceu um canto solitário porque se compôs em uníssono. No vaivém de tons e sons dissonantes, o diapasão. Agourento que só. Na saída da cozinha, a empregada mirou o céu do quintal. As aves, num voo rasante, já haviam passado. O avô coçou as orelhas, esticou as canelas e caminhou para o banheiro. Olhou-se no espelho (um reflexo esmaecido, rugas, traços abundantes). Resolveu escovar os dentes. Nervoso, roçava a escova na boca, encostando-a sadicamente na própria goela. A espuma ácida escorria por entre os lábios.

      Frente da casa: uma sala esquecida, trancada, inválida e, ao lado, o saguão quase varanda. Dona Salustiana sorria, exultante com a presença de Graça. Consigo, uma pequena criança. Havia no local um outro sofá — este mais discreto, porém sujo, cheio de rasgões. Sentaram-se nele para tecer ovações sobre a suposta beleza do menino. Alheio aos elogios, o fedelho emitia grunhidos indecifráveis. Estava indisposto e cada vez mais se impacientava com os afagos exagerados da velha. Graça fingia contentamento. O som de passos claudicantes avolumou-se. Uma pequena chupeta ao chão. Longínquos segundos atrás, quando o avô andava pela sala ensaiando algum maldizer, o agora iminente e desagradável arrastar de chinelos anunciava a chegada do velho. Graça estava agachada, a procurar pelo bico. Dona Salu fazia caretas ridículas para o menino. O avô olhou-as fixamente e um silêncio sepulcral dissipou os gracejos. A criança, meio atônita, calou-se (como se percebesse alguma desarmonia). Graça tomou-a dos braços da vizinha e improvisou uma despedida canhestra:

— Preciso adiantar as marmitas de amanhã. Sexta é o dia que tenho mais pedidos. Muito obrigada pela margarina, Salu. Lhe compro uma nova no sábado.

— Que nada, Graça! Tem pressa não.

      Sorrisos amarelos e a cara amarrada do avô se contrapunham. Dona Salustiana arfava. O velho e a sua hostilidade peculiar. Nutria um desprezo irascível por Graça, já a tinha expulsado de sua casa certa feita. Sentenciou, amiúde: a “mulherzinha” era má companhia, tinha idéias modernosas, imorais, comportamento libertino e, o pior, não perdia a oportunidade de achincalhar “gente direita”. Quase toda a vizinhança compartilhava da mesma opinião. Dona Salu, no entanto, nunca deu conta para a implicância do marido. E fazia ouvidos moucos para o falatório das comadres. Manteve, meio à sorrelfa, um débil laço de amizade com a vizinha.

— Salustiana, eu estou faminto. Vai logo botar a mesa!

— Já coloquei e tirei duas vezes...

— Não me interessa. Coloque novamente.

      “Velho esclerosado, escroto.” O menino choramingava. Graça ralhou, retirando-se afobadamente da varanda. Seu transtorno explícito só fez aumentar o embaraço de Dona Salu. Despediu-se da vizinha no meio-fio, vindo logo para dentro rechaçar o marido. “Quanta estupidez!” O avô, ao sofá, pernas cruzadas, não lhe deu a mínima importância. Como de hábito, puxou um palito do seu inseparável estojinho de prata e pôs-se a futicar os dentes. Com esse tipo de atitude, costumava desdenhar solenemente das reclamações de Dona Salu.

      Caminharam para o interior da casa, chegando rapidamente à copa. Sequioso, o avô prostrou-se numa das cadeiras da extensa mesa de jacarandá. Dona Salu, feições amaríssimas, seguiu até a cozinha. Tentava não mais reclamar, porém uma queixa insis-tente pelejava contra os dentes cerrados. Procurou pela empre¬gada, que, solerte, havia escapulido para a rua. A jovem mulata andava meio enrabichada pelo ajudante da padaria. Pensou em brigar, nalgum sermão, mas a raiva pelo avô aplacava as rus¬gas menores. Apressou-se, então, em requentar o almoço: arroz branco, ensopado de carne e feijão mulatinho. No ensopado, flutuavam bolhas de óleo, fruto da sua mão pesada para lidar com a gordura. Os médicos do avô haviam ordenado privações e uma dieta rigorosa, mas o velho, avesso à comida sem sebo, só aceitou que se diminuísse o sal.

      À beira do fogão, sentia o calor lhe invadir as entranhas. Queimava por dentro. Transferiu a ira para a colher de madeira com a qual mexia a panela. Segurava-a com firmeza tal que na unha do polegar direito delineou-se um arco esbranquiçado.

      Retornou à copa com o prato do marido já pronto. Nem a quentura da louça a fez resmungar novamente. Colocou-o sobre a mesa junto com alguns talheres, dois guardanapos e um copo vazio. Arrumava tudo com imensa e clara má vontade. Por fim, sentou-se na outra extremidade e ficou roendo as unhas. O avô mantinha-se absurdamente alheio ao seu descontentamento. Com a boca cheia, tratou de comentar amenidades:

– Tem muita areia de praia no carpete do carro. Vou passar num posto de gasolina para aspirar o estofado e lavar os tapetes. Me dá agonia dirigir descalço, o pé fica cheio de cisco, formigando.

— Quem ouve isso até pensa: ele dirige todo santo dia! Ai, ai... Aproveite e compre farinha de mandioca. Vou fazer pirão de aipim com carne de sol pra janta.

— Carne de sol?

— Não quer?

— Você quer me matar, Salustiana?! Pois mande a menina. Vou tirar um cochilo assim que voltar.

      A mulher voltou à cozinha para apanhar uma jarra com suco de cajá. No caminho, apertou o botão da TV. Em um canal qualquer, a cantora gospel materializava os raios turvos da luz. Esgoelava-se numa cantoria estéril, sentimento de subserviência a algum deus.

      Na agonia do mundo, Dona Salu deslizava. Àquela altura, já tinha sucumbido à indiferença do avô. Para ela, sentimentos imprecisos se elevavam acima dos sentimentos desabridos. O desprezo estava acima do ódio e do amor e, portanto, era superior aos dois. O amor não passava de uma anomalia carnal, que só contribuía para “desnortear os justos”. O marido, por exemplo, era um justo frequentemente tentado ao descaminho. Melhor não irritá-lo, pois, tomado pela vertigem dos bêbados, ele certamente responderia com humilhações, asperezas, maledicências e alegações mesquinhas. Também era preciso preservar a sua saúde, afinal a pressão alta e as crises de mal-estar estavam se tornando corriqueiras.