quarta-feira, 11 de maio de 2011

Paranóia ou mistificação?

As pautas sobre literatura andam muito comportadas. Por isso - e também pra animar este moribundo blog - resolvi entrar na polêmica sobre o suposto racismo de Monteiro Lobato. A questão ganhou força em 2010, depois que o Conselho Nacional de Educação viu discriminação racial na obra “Caçadas de Pedrinho”, e ainda hoje incomoda gente como a escritora Ana Maria Gonçalves, autora do romance “Um defeito de cor”.
Numa entrevista recente ao Terra Magazine (http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI5122209-EI6581,00-Estudiosos+tentam+limpar+racismo+da+obra+de+Lobato+diz+escritora.html), Gonçalves detonou Lobato e soltou os cachorros contra o que chamou de “umbiguismo em torno dos comentários e das matérias sobre o tema”. Umbiguismo?
Taí o grande problema dos agentes do bem. Eles se consideram tutores autoproclamados da sociedade e suas iniciativas bem-intencionadas visam apenas “melhorar a qualidade de vida” do outro. Na lógica dessa gente, ninguém tem autonomia pra refletir sobre as controvérsias da existência humana. Claro, é muito mais fácil apontar o dedo contra escritores perigosos e racistas do que apostar na formação de indivíduos autônomos e capazes de questionar o mundo e a si mesmo.
Se lesse o que eu acabo de escrever, dona Ana Maria diria que não se pode cobrar postura independente de uma criança em processo de alfabetização. Ok, mas não é bem o caso. Crianças de nove anos, faixa para qual se dirige grande parte da obra de Monteiro Lobato, não são tão dóceis e já possuem seus próprios códigos estéticos e de conduta. Espera-se, além disso, que tenham sido educadas dentro de uma perspectiva mais crítica. Por que diabos, então, estariam tão suscetíveis ao suposto racismo das histórias do escritor?
Há inúmeras outras possibilidades que a ficção de “O sítio do pica-pau amarelo” e cia poderia estimular na gurizada, mas dona Ana está preocupada apenas com as entrelinhas Mister Hyde das obras. Várias gerações leram Lobato, gerações inclusive diretamente engajadas na melhoria dos padrões de civilidade do Brasil, mas dona Ana acha que não vale a pena o Estado bancar a difusão de “livros cheios de preconceitos, com ilustrações horrorosas, pouco atraentes e de difícil compreensão”.
Como se não bastasse tamanha patrulha, a escritora ainda defende a idéia de que, além de julgar o pensamento público (literário) dos escritores, o leitor deve conhecer sua pérfida e mesquinha intimidade. Só assim, talvez, saberá que Kafka era obrigado pelo pai a comer baratas ou que Lewis Carroll não passava de um pedófilo desnaturado.
A mim não interessa que ideólogo ou mau hábito faz a cabeça de um escritor, cineasta, músico ou pintor (Elia Kazan não se tornou um cineasta menor depois que se descobriu sua contribuição para o macarthismo). A obra se impõe, independentemente do espírito do tempo, que muitas vezes deixa marcas na personalidade do artista. Se Lobato possuía pendores racistas, pior pra ele, que talvez tivesse sido um escritor ainda mais sensacional caso não houvesse flertado com teorias tão boçais.