sábado, 23 de julho de 2011

Algumas resenhas sobre o romance II

Uma família em claro-escuro - Nílson Galvão (Jornal A Tarde, Caderno 2 - pág. 5, de 11 de junho de 2011)


Com quantas camadas de mesquinharia se retrata uma família infeliz? O baiano Márcio Matos parece ter partido de uma pergunta assim para conceber o seu romance de estréia, A suave anomalia. Com uma paleta de tintas ásperas, traços vigorosos e bom domínio da técnica, o autor se vale do talento de observador de paisagens humanas para compor uma narrativa em claro-escuro, onde a luz, se não deixa de se insinuar, será sempre surpreendida por uma calculada sucessão de elementos de sombra.

E que sombras: a maior, e mais angustiante, é a do patriarca do casarão onde se concentra todo o apelo dramático da história. É como se casarão e patriarca, aliás, fossem a extensão um do outro, seres míticos a destilar veneno para assustar e atarantar a família. Mas há outros espectros a rondar o casarão, nas formas de matriarca, filhos, noras, genros e agregados que, se não atingem o grau de violência psicológica daquele que é descrito ao longo de todo o livro como simplesmente “o avô”, não ficam atrás nas intenções espúrias e nas manobras sórdidas.

O livro só concede as cores da esperança à caçula da família, uma moça que destoa do restante pelo perfil sonhador, por gostar de ler, por se ligar em música pop. Marina e seus arroubos de adolescente extemporânea conferem graça e leveza a muitas passagens de A suave anomalia, numa espécie de contraponto ao peso carregado pelos demais personagens. Mas não é à toa, é bom que se avise, que a moça divide com o pai o protagonismo da trama.

Que se prepare para revelações e situações hardcore, portanto, quem topar essa travessia do casarão tendo como guia a escrita cáustica de Márcio Matos. Ah, sim, e antes que seja tarde: vale lembrar que cenário e personagens cheios de meandros e tortuosos subterfúgios mostram-se ao leitor em meio a escaramuças com pinta de romance policial. É preciso saber, afinal, se as mortes que abalam a trama foram ou não criminosas – e neste último caso descobrir, claro, quem foi que matou, e como, e por quê.

Ao longo da narrativa, o autor conduz com habilidade, mas um certo tom blasé, essa espécie de “who dunnit”, o famoso “quem fez isso” das histórias policiais. Até porque essa questão, em si, não é o que importa. O foco mesmo é observar como as pessoas reagem aos acontecimentos.

Como o filho mais velho, por exemplo, é capaz de se mostrar frio, oportunista e lamentavelmente inepto para conspirar em meio ao luto familiar. E como algumas das cartadas mais ardilosas acabam saindo da cabeça da nora superficial e aparentemente pouco afeita a manipular as pessoas como um exímio jogador de xadrez.

Contemplado pelo edital de apoio à publicação de obras de autores baianos da Secretaria de Cultura do Estado (Secult) e publicado pela editora Casarão do Verbo, o romance de Márcio Matos é antes de tudo uma boa notícia para a cena literária local. Sinal de que tem escritor novo na praça. E que de sua lavra ainda se devem esperar muitas, e quem sabe ainda mais ousadas, dessas suaves anomalias.

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Nilson Galvão é jornalista e poeta (http://nilsonpedro.wordpress.com)


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